Ensaio
21.08.21
A profecia é água escura e misteriosa, sempre presente
Por Camila Fontenele

A profecia é água escura e misteriosa, sempre presente (i)

Para que esta escrita possa acontecer, é necessário desdobrar o tempo, e não somente alcançar 2019, ano de início da pesquisa, mas também cavar buracos mais profundos. Assim, creio que seja importante enunciar que falar sobre Sorocaba é uma grande provocação que aceitei como possibilidade de criar tramas mais complexas e torções naquilo que conhecemos, e muitas vezes sustentamos, como história oficial. E a história como nos foi apresentada permanece intocável, inominável e digna de conservação, rememoração e celebração. Diante disso, trago uma escrita deslocada, que vai-volta no tempo e transtorna tudo aquilo que, como alguém radicada nesta cidade, aprendi ser o único ponto de partida. Estas palavras, que começamos apenas a degustar e ainda nem chegamos no caroço, não sucedem sozinhas.

Os antepassados são o tronco. Cultuando o tronco com devoção, viçosos se tornam os galhos, e bons frutos se produzem (ii).

Quando comecei a pesquisar sobre o território de Sorocaba, fazia mais ou menos uma semana que uma das árvores mortas e secas, moradoras da minha calçada lateral, tinha caído. Foi em uma segunda-feira, dia cinco do mês oito, que então ela tombou em cima de um carro. Sua copa quebrou a parte traseira do automóvel, como um último suspiro, nem precisou de ventania para despencar. Fez voo livre. Lembro que saí na rua de pijama e aproveitei para conhecer meus novos vizinhos no caos matutino. Segundo relatos, a árvore tinha caído em cima do carro de um parente da pessoa que havia matado a dita cuja. Era um tipo de acerto de contas. Em um piscar de olhos surgiram bombeiros, a polícia militar, órgãos da prefeitura e curiosos que filmaram a lateral da minha casa para mandar à televisão.

Não posso afirmar nada sobre todo o contexto, mas desde então tenho me apropriado desse acontecimento para alongar reflexões, principalmente as que estamos vivendo atualmente em um ambiente macro. O vizinho se incomodava com as folhas que, segundo ele, “sujavam” demais. Realizar o exercício performativo de varrer a calçada, quase que diariamente, me fez chegar em novas possibilidades de existir, conectar e executar minhas tarefas. Além disso, foi a maneira que encontrei de manter viva a outra árvore – a amendoeira – que reside na calçada da frente.

Em outra segunda-feira, o céu escureceu perto do horário do almoço. Me lembrei das árvores mortas, do assassinato concebido e dos discursos da vizinhança. Me senti dolorida, como se aquele corpo de raízes fosse meu, e a queda também, do céu e do tronco. Foi através do evento da árvore e do céu que virou noite que consegui conceber uma guiança para a pesquisa. O longe, esse ambiente macro que nos causa incômodo, é a canalização de todos os “pertos” que deixamos de olhar. A palavra-chave era perto, a ação de estar perto.

Entre uma articulação e outra, entre demandas da curadoria, fui convidando as pessoas da minha rede para ter um olhar mais imaginativo e crítico sobre a cidade. Percebam, desde os lados do Sesc até a Zona Norte, é possível criar pontos de conexão. Quem anda pela Afonso Vergueiro, perto do Maloca Centro Criativo, ou pela Vila São João, deve saber que existe um rio enterrado que traz à tona suas memórias aquáticas em toda chuva forte. O Cemitério da Saudade é um grande centro de rituais e canonização de pessoas daqui.

Pois bem, o que muda quando sabemos que a rua passa pelo meio do rio? O que muda quando questionamos o regime de quem pode falar? O que muda quando nomeamos? O que muda quando olhamos e agimos a partir do perto? São perguntas que passei a fazer, não para encontrar respostas e certezas absolutas, mas para (des)orientar aquilo que já estava pronto, na ponta da minha língua, quando o assunto era a cidade.

Ser radicada aqui me pareceu de grande importância para que o estudo seguisse por informações e caminhos mais relevantes e pertinentes ao território. Passei a desejar que o estar perto fosse um conceito-chave expandido. Um mantra para atrair enraizamento todas as vezes que o não pertencimento se fizer presente.

Olhar no fundo dos olhos da cidade

E com o perto determinado como guia, a minha primeira interlocução foi com a Drika Martim no Clube 28 de Setembro. Era uma noite de quarta-feira e estava acontecendo uma reunião popular muito numerosa quando cheguei. Sentamos em uma pequena mesa, lembro que tínhamos que falar alto pela quantidade de pessoas e tons de vozes. Eu estava nervosa, pois Drika proporcionava uma troca muito generosa, e eu tinha medo de não conseguir anotar tudo. O que ficou latente pra mim é que a Zona Norte – assim como os diversos movimentos negros existentes na cidade – tem uma atuação muito intensa e agentes comprometidos com seus lugares de vivência, como o Coletivo Samba Sorocaba e a Central Única das Favelas (Cufa), onde Drika faz parte da organização; o Centro Cultural Quilombinho, que atualmente está sob direção de Luíza Alves, filha de Rosângela Alves, falecida em 2017, com sede no bairro Maria Eugênia; a Rádio Cultural FM e a Biblioteca Comunitária Milton Expedito, ambas no bairro Paineiras; o Ato Ecumênico, idealizado por Rosângela Alves, que ocorre anualmente em novembro na Capela Senhor do Bonfim, entre outras ações e coletivos – cujos nomes ainda são desconhecidos – que podem estar acendendo feito faísca neste exato momento, enquanto os meus dedos famintos digitam estas palavras.

Vanessa Soares, durante um café da tarde em minha casa, compartilhou sua perspectiva brincante, experiências permeadas pelo maracatu e pelas manifestações populares. Embora relevantes para o histórico da cidade, essas atividades são muitas vezes silenciadas pelos livros e/ou pela reclamação constante da vizinhança que escuta a vibração dos ensaios de maracatu nas praças públicas. Daiana Moura, que também é amiga de Vanessa – porque aqui a gente meio que conhece um bocado todo mundo (ou, ao menos, já ouviu falar) –, pontuou questões importantíssimas sobre João de Camargo (iii) (1858-1942), nascido em condição de escravidão. Através de uma mensagem da dimensão dos céus ele recebeu a missão de fundar uma nova religião em Sorocaba, através da Igreja da Água Vermelha (iv) (1906). Nhô João curou (e ainda cura) muita gente de dentro e de fora da cidade. Com isso, em homenagem ao preto velho, além do Ato Ecumênico, acontecem giras dentro do Cemitério da Saudade. É considerável salientar não somente a permanência e funcionamento da igreja, hoje conhecida como Capela Senhor do Bonfim, mas também celebrá-la como um símbolo de resistência, principalmente dentro de uma cidade que sufoca tudo o que destoa da norma. Outra questão relevante e que nos cabe um olhar mais crítico é que muito do que conhecemos e lemos sobre a vida de João de Camargo foi (e ainda é) escrito (e publicado) por pessoas brancas, então nos cabe refletir que grupo permanece contando (e validando) as nossas histórias.

Fizemos alguns passeios a pé pelo centro da cidade com Flávia Aguilera e Ronaldo Ramos, a fim de (re)conhecer um chão, onde é necessário ter a observação e outros sentidos ativados para não correr o risco de apenas olharmos rapidamente. Perdemos muito quando não vemos. Sorocaba guarda indícios de que o centro da cidade, entre o eixo da rua São Bento – Igreja de Sant’ana, tenha sido parte do Caminho do Peabiru. Porém, pouco sabemos sobre os territórios indígenas antes da chegada dos bandeirantes (figuras muito celebradas), nada que possa ir além de lacunas e contradições. Então, como podemos defrontar esses sulcos? Que tipo de informações se achega quando olhamos no fundo dos olhos da cidade?

Os encontros (v) foram acontecendo e me interessava cada vez mais escutar as pessoas e perguntar a elas, não apenas a respeito dos acontecimentos daqui, mas também sobre como se sentiam em relação a este lugar: será que se sentiam pertencidas? Se sim, como medeiam o pertencimento? Será que elas também se perguntavam qual nado era necessário compor para atravessar as ruas que têm nome e sobrenome de bandeirantes? E se os rios cobrissem esses nomes e todas as outras placas? Eu costumava demorar nas indagações, pois elas me levavam a um lugar-entre fervilhante. Foi dessa forma, de um perto muito profundo, que fui desenhando infindas conexões, saindo das certezas (absolutas) para fazer a travessia pelas entrelinhas, pelo dito e não dito e por aquilo que se resguarda no segredo.

Os insumos, inicialmente elementos que ficariam somente no campo conceitual do projeto, desaguaram no educativo em uma parceria muito potente com a coordenadora Renata Sampaio. E, apesar da distância física, percebemos que existia um fio conectando nossos territórios de vivência. Ele partia do chão, por questões históricas, mas também permeava dimensões invisíveis, o que tornava todo o processo de trabalho mais íntimo. Com isso, iniciamos um mapeamento com todas as informações colhidas desde agosto de 2019, o que nos possibilitou chegar em fluxogramas, mapas e, mais adiante, no Apé (vi), um jogo de tabuleiro construído coletivamente.

Travessia pelas ranhuras da cidade

Existe um mundo paralelo, contíguo a este em que vivemos. Você é capaz de entrar nele até um certo ponto. É também capaz de voltar de lá são e salvo. Contando que esteja atento. Mas uma vez transposto certo ponto, nunca mais será possível voltar. Não vai achar o caminho. É um labirinto.
Haruki Murakami

O mundo anunciava o surto de Covid-19. O isolamento social, assim como o uso de máscaras e a higienização das mãos, era recomendado para que a contaminação fosse contida. Seriam “apenas” quinze dias, que se transformaram em um mês, em um ano e, ao menos no Brasil, percebemos que viveríamos uma política de morte declarada (vii). Foi prudente recalcular rotas, abdicar de alguns caminhos, cancelar conversas e visitas agendadas e adiar qualquer coisa prevista para ocorrer nos próximos meses.

Então, em meio a essa neblina, esbarrei com uma postagem da fotógrafa Isadora Romero, no perfil do Foto Féminas (viii), cuja legenda se iniciava com a pergunta: ¿Qué significa el territorio en tiempos de cuarentena? [O que significa o território em tempo de quarentena?] A provocação fazia menção à alta taxa de mortalidade por Covid-19 no Equador e visava refletir sobre o isolamento. Romero, através de suas fotografias pessoais, do arquivo da nasa e do Google Street View, criou um espaço territorial pixelado, uma viagem imaginária possível, para o caso de não conseguir mais sair de casa. Me senti muito atravessada pela observação de Isadora e passei a executar alguns exercícios de deslocamento nos cômodos de casa, no quintal, nos sonhos, até mesmo em simulações no Google Maps para que não me deixasse esquecer quanto tempo o ônibus demorava para dar uma volta no quarteirão.

O perto, estar perto continuava indispensável para a investigação, mas agora um estado de porosidade, capaz de escutar e habitar as ranhuras, passava a ser fundamental. Como provocar atravessamentos em uma cidade que não permite a permeabilidade? A disponibilidade é uma responsabilidade única do lugar ou das pessoas? O que acontece se um vento muito forte bater nos muros da cidade? As águas finalmente poderão fluir ou Sorocaba é um deserto? Uma reelaboração do território, para além de uma grande extensão de terra possível de ser encontrada em um mapa, era necessária.

Recorri ao tarô, a fim de refletir, por via oracular, não apenas sobre um novo ponto de partida como também trazer, novamente, a imagem do deserto. No jogo, foi-me apresentado dos arcanos maiores: A Imperatriz (III) seguida pela Torre (XVI). Nas cartas (ix), A Imperatriz é uma mulher corpulenta e está com as pernas na água e o restante do corpo na terra, ela segura relaxada uma romã na mão direita em um jardim florido e, por trás dela, a lua cheia faz uma aparição junto a um escudo com o símbolo de Vênus. A Torre, normalmente um arcano muito temido, nos mostra um presságio de desmoronamento, duas mulheres despencam de uma torre que é atingida por uma pena com cores de fogo. O que seria então o fogo no campo fértil da mulher corpulenta? Onde estariam suas sementes após a destruição? Ao interpretá-las juntas, pensei em uma explosão muito poderosa que possibilitasse o surgimento de outra coisa, um tipo de expurgo dramático.

Fui direcionada para o universo particular dos terrenos baldios, tão numerosos e presentes na cidade, que também se assimilam à “minicerrados”. Engraçado que, quando somos instigadas por outros procedimentos, as passagens se apresentam. Dias após a guiança das cartas e das áreas verdes, uma amiga se achegou e contou-me sobre a canela-de-ema, uma planta do cerrado normalmente encontrada nos estados da Bahia, Distrito Federal, Goiás, Tocantins, Mato Grosso, São Paulo, entre outros. Essa planta tem o crescimento muito lento e floresce mesmo depois de uma queimada, pois sua principal característica é a combustão. Além disso, ela também serve para fins medicinais, artesanais e, até mesmo, como lenha. Acolhi essa informação como uma intuição muito forte de que a combinação entre a Imperatriz e a Torre poderia resguardar uma fênix do cerrado, a planta que nasce após incêndios.

Percebi que estava (re)elaborando em movimento, borrando os contornos, viajando por lugares labirínticos e que nada estaria pronto (muito menos este texto). Não existia uma única perspectiva para o território e as numerosas opções não tinham a intenção de se tornar uma nova verdade. Novamente, era necessário empregar uma energia imaginativa. Então, comecei a esboçar: território é travessia, deslocamento, encruzilhada, catalisador que promove o encontro das diversas epistemologias. Território é a vibração dos fluxos energéticos, o estremecimento antes da queda da Torre, seja pela pena de fogo ou por um raio. Um dia li que as erupções vulcânicas são geradas nas profundezas do planeta. O vulcão também é um território: sua lava, seu estrondo, sua explosão e destruição. Território é afeto, afetação, porosidade. Atravessamento. Território é corpo. Território é aquilo que nos orienta e desorienta, assim, na mesma força. E talvez os nossos olhos aguados também sejam um território…

Camila Fontenele
assistente curatorial

Camila Fontenele

Radicada na cidade de Sorocaba, bacharel em Comunicação Social: publicidade e propaganda na Uniso e pós-graduada em Cinema, Vídeo e TV: estética da imagem em movimento no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. É artista visual e pesquisadora. Atualmente é assistente de curadoria da 3ª edição de Frestas – Trienal das Artes 2020-2021.

Notas

(i) Menção a um trecho do livro Kafka à beira-mar (2002), de Haruki Murakami.

(ii) Frase retirada de um instrumento de percussão exposto na vitrine de relíquias de João de Camargo, na Capela da Água Vermelha.

(iii) João de Camargo criou a religião que advém do culto aos mortos, o culto à calunga. A Capela está fundamentada nos pilares da água, pedra e verdade, e foi construída à margem do Córrego da Água Vermelha.

(iv) João de Camargo, em seu primeiro sermão, a chamou de Igreja Negra e Misteriosa da Água Vermelha.

(v) Acredito que seja importante frisar que não consegui citar o nome de todas as pessoas que encontrei durante o processo e que a pesquisa também foi permeada por conversas com o invisível, vidas não humanas, sonhos, jogos de tarô etc. Meu profundo agradecimento e afeto a todas que fizeram essa travessia junto comigo.

(vi) Do tupi a’pe: caminho, vereda.

(vii) O Brasil já contabiliza mais de 500 mil óbitos por Covid-19 até o momento de fechamento deste texto.

(viii) Foto Féminas é uma plataforma dedicada à promoção de fotógrafas latino-americanas e caribenhas.

(ix) Para o jogo, utilizei o deck da Nosotras Tarot, desenvolvido pela taróloga Paula Mariá e desenhado pela artista gráfica e colagista Elisa Riemer.

Voltar