O rio é uma serpente: primeiro ato
O rio é uma serpente, título-estopim da 3ª Frestas – Trienal de Artes, abarca uma cosmovisão das estratégias que tivemos de elaborar e recriar para chegar até aqui e, como tal, toma seu próprio caminho enquanto proposta curatorial cujo ponto de partida foi a soma dos encontros em diálogo com artistas, ativistas e pessoas que produzem pensamento e conhecimento.
Em cada uma das curvas dessa trajetória, buscamos e debatemos estratégias críticas de negociações políticas, econômicas e institucionais que igualmente transitam por múltiplos ecossistemas, sejam eles naturais, espirituais ou subjetivos. Da mesma forma, nos deparamos com os efeitos das inúmeras contradições aí contidas, refletindo sobre as possibilidades, as potências e os desafios que habitam os limites entre o negociável e o inegociável, decisivos para a saúde de nosso processo curatorial. E, para além de nós, aprendemos que tais estratégias se referem também aos caminhos já percorridos por outros corpos que, encontrando-se em tempos e espaços históricos distintos, foram condicionados a agenciar permanências e acessos como único modo de garantir a manutenção de suas existências.
Sob o chão movediço da contradição, destravadas pelo avanço do capital neoliberal e pelos processos sistêmicos de captura de subjetividades como geração de valor e reencenação de uma ética colonial, lançamos algumas perguntas: como produzir saídas quando é preciso fazer da impossibilidade de escolhas nossa própria escolha? Em tempos nos quais é preciso criar formas de ver e conceber o mundo que ainda não estão disponíveis historicamente para nós, que corpo elástico, sinuoso e poroso é esse que criamos? Nos situando no campo do segredo que recobre a resiliência, que tipo de tecnologias elaboramos? Quais estratégias de solidariedade são possíveis e o que dizem os corpos que, habitando estruturas de poder assimétricas, elaboram mundos tão vastos?
Das curvas dos rios que navegamos durante a viagem de pesquisa, pudemos avistar, em suas formas serpenteadas por um tempo não linear, as palavras cheias de imagens que nos ajudariam a traduzir as experiências intangíveis dos contratos, conflitos e acordos que vivenciamos. Assim, a serpente como metáfora expandida por sua ampla cosmologia nas mais diferentes narrativas míticas e culturais nos serve aqui como mirada para discutirmos as águas turvas que regem os movimentos contemporâneos da plantação e suas geografias coloniais.
Desaguando no território de Sorocaba, nos interessa pensar uma ética que desorganiza os já conhecidos modos de produção de violência simbólica postos na relação de categorização e fetichização do outro. Também nos interessa criar novas paisagens questionando de que forma códigos e linguagens são feitos e quais mecanismos compactuam com a manutenção de infraestruturas que regulam dinâmicas de poder, legitimam discursos, condicionam acessos, travam a crítica e forjam uma ideia de pacificação e consenso.
O rio é uma serpente porque se esconde e camufla e entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias em seu próprio movimento.
O rio é uma serpente: segundo ato
Depois de um longo respiro em busca de fôlego, se não há surpresas quando avistamos as palavras seguindo agora seu curso, é porque aprendemos que não é possível transpor a curva de um rio e subestimar seus efeitos. Como escrevemos naquelas que pareciam ser nossas últimas linhas, sabemos que as mudanças que estão por vir provavelmente não acompanharão as mesmas palavras, tampouco o que elas almejam ou desaguam. Por isso, para nós, justapor aquilo que elaboramos em ambos os textos é realçar o desenho da quebra.
Pressentimentos que já vinham sendo especulados pelo grupo de artistas, pessoas que constroem pensamento e as comunidades com as quais nos envolvemos e dialogamos, reunidos sob o título O rio é uma serpente, vêm se manifestando não somente como um conjunto de perguntas em torno das ações da natureza e seu tempo cíclico, mas sobretudo como cosmovisão, performance e tecnologia que anunciavam em suas profundezas o iminente colapso natural que agora enfrentamos sob o nome de pandemia.
Neste segundo ato, essa catástrofe já anunciada torna hipervisíveis as formas pelas quais as camadas de violência se sobrepõem nas necrópoles raciais do globo, abrindo ainda mais precedentes tanto para as políticas de extermínio quanto para o achatamento da vida, via sistemas de controle e vigilância fundados no cerne da economia neoliberal.
Ao destacarmos do projeto tudo aquilo que nos dava relevo, entendemos que parte do exercício de acompanhar a forma que as águas agora tomam diz respeito às escolhas urgentes e irremediáveis que tivemos de fazer quando nos aprofundamos nas esferas conceituais e estruturais de Frestas. Apesar da desesperança, da potencialização do medo e da ansiedade, essas curvas e contornos sublinham a importância de seguirmos criando estratégias frente a uma total subordinação do ecossistema ao avanço atômico do capital globalizado e dos efeitos sociais e subjetivos, climáticos e microbiológicos, que se encontram intensificados em todas as classes vulneráveis a sua degradação, nos quesitos mais primordiais da vida.
Tendo em vista de que forma as estratégias de negociação que criamos ou em que mergulhamos nos prepararam até aqui, coube a nós intensificá-las testando os limites do que era possível e necessário ser feito no contexto de um evento de arte contemporânea. Assim, atentando para que o incentivo às práticas locais não se confunda com exaltações nacionalistas, para que o individualismo não se concretize como o único meio de sociabilidade e para que a virtualidade não nos precarize, repensamos o papel do aparato expositivo a partir de um calendário de ações que se inicia em outubro de 2020 e que, como parte da plataforma, apresenta um Programa de Estudos composto de atividades formativas cujo objetivo é fomentar práticas educativas radicais e ao mesmo tempo incentivar políticas de redistribuição e de acesso.
Formado por 15 artistas, o Programa é acompanhado ainda por uma programação pública com uma ampla agenda de cursos, seminários, palestras, lançamentos editoriais e mostras de filmes e vídeos. Estabelecendo uma relação estreita entre a curadoria e o educativo, o desejo é que esse espaço de troca culmine, assim que nossas presenças forem possíveis, num espaço de celebração e encontro que, até este momento e a partir daquilo que conhecemos, podemos evocar como exposição. Tudo isso conscientes de que, daqui em diante, a principal característica da exibição não é sua circunscrita fisicalidade, e sim tudo aquilo que não sabemos, precisaremos reimaginar e está por vir.
O rio é uma serpente porque se esconde e camufla e entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias em seu próprio movimento.
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Em breve
Afluentes é o nome da publicação educativa da 3° edição de Frestas – Trienal de Artes: O rio é uma serpente.
Um compilado de textos pensados a partir de conceitos e temas que permeiam o pensamento curatorial desta edição que queremos que desemboquem em sala de aula. A publicação é composta de conversas, entrevista, ensaios, relatos e planos de aula elaborados por artistas, agentes da educação e pessoas produtoras de conhecimento que compartilham conosco reflexões em torno da arte e educação para a diferença, articulando diálogos com as leis 10.639/03 e 11.645/08 e com modos alternativos de pensamento ecológico, espiritualidade, saúde e justiça social.