Caminhos-devires
Afirmar que o rio é uma serpente corresponde a designá-lo, não como “recurso natural” a serviço dos humanos, mas como um ser dotado de vida, trajetória e cultura próprias. Mais que isso, significa concebê-lo como entidade híbrida, um corpo aquático-animal serpenteante e dinâmico, hábil em transpor limites de diferentes naturezas. Incorporando essa perspectiva desafiadora da episteme ocidental, a presente edição de Frestas – Trienal de Artes do Sesc Sorocaba tem como mote a relação entre formas de existência não hegemônicas e os caminhos que elas inventam.
Dos aspectos que singularizam tais existências destacam-se, no projeto da mostra, as suas vulnerabilidades, dissidências e potências. Assumi-las como decisivas para o processo decolonial inclui tanto colocar o especismo em questão como lidar com os corpos humanos em sua dimensão racializada – reconhecendo as assimetrias que esses fenômenos carregam. Ao contrário dos modos dominantes de existência, essas vidas muitas vezes não contam com caminhos abertos para suas travessias. A invenção e a negociação de outras rotas, outros destinos, surge como chance de reorientar os rumos traçados, até agora, pelas frações hegemônicas da sociedade, com seus mecanismos de exclusão, exploração e violência. Desenhar outras veredas envolve conceber maneiras alternativas de compreender o mundo e de com ele interagir.
É nessa direção que o Sesc procura apontar com sua ação cultural, fomentando experiências simbólicas dedicadas a buscar saídas em meio a uma conjuntura cujas vias parecem conduzir a lugares onde não gostaríamos de chegar, embora já tenhamos chegado. Emblemática desses “lugares”, a pandemia de Covid-19 se interpôs na trajetória de Frestas, exigindo que seu curso fosse alterado. Nesse retraçado, a Trienal duplica sua aposta na resiliência, desenvolvendo mais imediatamente o seu Programa de Estudos no ambiente virtual para, em 2021, realizar a sua etapa presencial. Se o rio é uma serpente, o que pode vir a ser uma exposição?
Danilo Santos de Miranda
Diretor Regional do Sesc São Paulo
O Sesc – Serviço Social do Comércio é uma instituição privada, sem fins lucrativos, criada em 1946 pelos empresários do comércio e de serviços em todo o Brasil. No estado de São Paulo, o Sesc conta com 42 centros que congregam suas áreas de atuação nos campos de cultura, educação, esportes, lazer e saúde. As ações do Sesc São Paulo se norteiam por seu caráter educativo e pela busca do bem-estar social com base em uma compreensão ampla do termo cultura. Nesse sentido, a acessibilidade plena aos espaços e conteúdos oferecidos pela instituição tem em vista a democratização dos bens culturais como forma de autonomia do indivíduo.
No campo das artes visuais, a instituição cumpre o papel de difusora da produção artística contemporânea e dos demais períodos históricos, bem como das intersecções com outras linguagens artísticas, tendo como diretriz a realização de exposições para todos os públicos. São realizados, ainda, projetos com instalações, intervenções e performances, bem como atividades de ação educativa e mediação em formatos variados, tendo como foco o atendimento qualificado tanto a grupos agendados quanto ao público espontâneo, buscando, sobretudo, o alcance de uma formação sensível e o estímulo à autonomia e à liberdade de escolha.
O Sesc desenvolve, assim, uma ação de educação informal e permanente com intuito de valorizar as pessoas ao estimular a autonomia, a interação e o contato com expressões e modos diversos de pensar, agir e sentir.
O rio é uma serpente: primeiro ato
O rio é uma serpente, título-estopim da 3ª Frestas – Trienal de Artes, abarca uma cosmovisão das estratégias que tivemos de elaborar e recriar para chegar até aqui e, como tal, toma seu próprio caminho enquanto proposta curatorial cujo ponto de partida foi a soma dos encontros em diálogo com artistas, ativistas e pessoas que produzem pensamento e conhecimento.
Em cada uma das curvas dessa trajetória, buscamos e debatemos estratégias críticas de negociações políticas, econômicas e institucionais que igualmente transitam por múltiplos ecossistemas, sejam eles naturais, espirituais ou subjetivos. Da mesma forma, nos deparamos com os efeitos das inúmeras contradições aí contidas, refletindo sobre as possibilidades, as potências e os desafios que habitam os limites entre o negociável e o inegociável, decisivos para a saúde de nosso processo curatorial. E, para além de nós, aprendemos que tais estratégias se referem também aos caminhos já percorridos por outros corpos que, encontrando-se em tempos e espaços históricos distintos, foram condicionados a agenciar permanências e acessos como único modo de garantir a manutenção de suas existências.
Sob o chão movediço da contradição, destravadas pelo avanço do capital neoliberal e pelos processos sistêmicos de captura de subjetividades como geração de valor e reencenação de uma ética colonial, lançamos algumas perguntas: como produzir saídas quando é preciso fazer da impossibilidade de escolhas nossa própria escolha? Em tempos nos quais é preciso criar formas de ver e conceber o mundo que ainda não estão disponíveis historicamente para nós, que corpo elástico, sinuoso e poroso é esse que criamos? Nos situando no campo do segredo que recobre a resiliência, que tipo de tecnologias elaboramos? Quais estratégias de solidariedade são possíveis e o que dizem os corpos que, habitando estruturas de poder assimétricas, elaboram mundos tão vastos?
Das curvas dos rios que navegamos durante a viagem de pesquisa, pudemos avistar, em suas formas serpenteadas por um tempo não linear, as palavras cheias de imagens que nos ajudariam a traduzir as experiências intangíveis dos contratos, conflitos e acordos que vivenciamos. Assim, a serpente como metáfora expandida por sua ampla cosmologia nas mais diferentes narrativas míticas e culturais nos serve aqui como mirada para discutirmos as águas turvas que regem os movimentos contemporâneos da plantação e suas geografias coloniais.
Desaguando no território de Sorocaba, nos interessa pensar uma ética que desorganiza os já conhecidos modos de produção de violência simbólica postos na relação de categorização e fetichização do outro. Também nos interessa criar novas paisagens questionando de que forma códigos e linguagens são feitos e quais mecanismos compactuam com a manutenção de infraestruturas que regulam dinâmicas de poder, legitimam discursos, condicionam acessos, travam a crítica e forjam uma ideia de pacificação e consenso.
O rio é uma serpente porque se esconde e camufla e entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias em seu próprio movimento.
O rio é uma serpente: segundo ato
Depois de um longo respiro em busca de fôlego, se não há surpresas quando avistamos as palavras seguindo agora seu curso, é porque aprendemos que não é possível transpor a curva de um rio e subestimar seus efeitos. Como escrevemos naquelas que pareciam ser nossas últimas linhas, sabemos que as mudanças que estão por vir provavelmente não acompanharão as mesmas palavras, tampouco o que elas almejam ou desaguam. Por isso, para nós, justapor aquilo que elaboramos em ambos os textos é realçar o desenho da quebra.
Pressentimentos que já vinham sendo especulados pelo grupo de artistas, pessoas que constroem pensamento e as comunidades com as quais nos envolvemos e dialogamos, reunidos sob o título O rio é uma serpente, vêm se manifestando não somente como um conjunto de perguntas em torno das ações da natureza e seu tempo cíclico, mas sobretudo como cosmovisão, performance e tecnologia que anunciavam em suas profundezas o iminente colapso natural que agora enfrentamos sob o nome de pandemia.
Neste segundo ato, essa catástrofe já anunciada torna hipervisíveis as formas pelas quais as camadas de violência se sobrepõem nas necrópoles raciais do globo, abrindo ainda mais precedentes tanto para as políticas de extermínio quanto para o achatamento da vida, via sistemas de controle e vigilância fundados no cerne da economia neoliberal.
Ao destacarmos do projeto tudo aquilo que nos dava relevo, entendemos que parte do exercício de acompanhar a forma que as águas agora tomam diz respeito às escolhas urgentes e irremediáveis que tivemos de fazer quando nos aprofundamos nas esferas conceituais e estruturais de Frestas. Apesar da desesperança, da potencialização do medo e da ansiedade, essas curvas e contornos sublinham a importância de seguirmos criando estratégias frente a uma total subordinação do ecossistema ao avanço atômico do capital globalizado e dos efeitos sociais e subjetivos, climáticos e microbiológicos, que se encontram intensificados em todas as classes vulneráveis a sua degradação, nos quesitos mais primordiais da vida.
Tendo em vista de que forma as estratégias de negociação que criamos ou em que mergulhamos nos prepararam até aqui, coube a nós intensificá-las testando os limites do que era possível e necessário ser feito no contexto de um evento de arte contemporânea. Assim, atentando para que o incentivo às práticas locais não se confunda com exaltações nacionalistas, para que o individualismo não se concretize como o único meio de sociabilidade e para que a virtualidade não nos precarize, repensamos o papel do aparato expositivo a partir de um calendário de ações que se inicia em outubro de 2020 e que, como parte da plataforma, apresenta um Programa de Estudos composto de atividades formativas cujo objetivo é fomentar práticas educativas radicais e ao mesmo tempo incentivar políticas de redistribuição e de acesso.
Formado por 15 artistas, o Programa é acompanhado ainda por uma programação pública com uma ampla agenda de cursos, seminários, palestras, lançamentos editoriais e mostras de filmes e vídeos. Estabelecendo uma relação estreita entre a curadoria e o educativo, o desejo é que esse espaço de troca culmine, assim que nossas presenças forem possíveis, num espaço de celebração e encontro que, até este momento e a partir daquilo que conhecemos, podemos evocar como exposição. Tudo isso conscientes de que, daqui em diante, a principal característica da exibição não é sua circunscrita fisicalidade, e sim tudo aquilo que não sabemos, precisaremos reimaginar e está por vir.
O rio é uma serpente porque se esconde e camufla e entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias em seu próprio movimento.
Curadora
(Rio de Janeiro, RJ – vive em São Paulo) é pesquisadora e curadora autônoma, com mestrado em História Social da Cultura pela puc-rj. É idealizadora e diretora da plataforma Lastro – Intercâmbios Livres em Arte. A partir de perspectivas anticoloniais, atua na condução e articulação de processos em rede e transdisciplinares de criação e aprendizagem. Em colaboração com o mam Rio, coordenou o projeto de catalogação dos acervos de obras e documentos de Márcia X (1959-2005), que culminou, em 2013, na exposição monográfica da artista e o lançamento de seu catálogo raisonné. Entre 2015 e 2016, integrou o programa Curador Visitante da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ), que se desenvolveu na criação das bases atuais da Biblioteca | Centro de Documentação e Pesquisa da eav. Fez parte das comissões curatoriais do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017) e da Bolsa Pampulha (2018/2019) e coordenou a residência artística Travessias Ocultas – Lastro Bolívia, que se desdobrou em exposição no Sesc Bom Retiro (SP, 2016/2017). Atualmente, integra a equipe curatorial da 3ª Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba, SP).
Curadora
(Mundo Novo, BA) é curadora independente, crítica e pesquisadora. Mestra em comunicação e semiótica pela puc-sp, seu trabalho consiste em experimentar práticas curatoriais contemporâneas em perspectiva decolonial. Atualmente, integra a equipe curatorial da 3ª Frestas – Trienal de Artes do Sesc São Paulo e assina a curadoria da exposição Os dias antes da quebra no Pivô Satélite. Entre seus principais projetos destacam-se a idealização do programa de arte-educação AfroTranscendence; a curadoria, entre 2016 e 2017, do programa de exposições Diálogos ausentes, do Itaú Cultural; e a curadoria do Valongo Festival Internacional da Imagem, em 2018 e 2019. Também em 2019 foi cocuradora da Residência PlusAfroT e da exposição coletiva Lost Body – Displacement as Choreography [Corpo perdido – Deslocamento como coreografia], ambos projetos ocorridos em Munique, Alemanha. Jurada de diversas comissões de seleção e premiação, é docente de especialização em gestão cultural do Itaú Cultural e cocuradora/organizadora do livro Textos para ler em voz alta, que será lançado em 2021 pela editora francesa Brook.
Curador
(São Paulo, SP) é curador e educador com formação em ciências sociais. Participa do programa Propositions for Non-Fascist-Living [Proposições para uma vida não fascista], organizado pela bak (base voor actuele kunst), em Utrecht, Países Baixos. Com a curadora Gabi Ngcobo, criou a plataforma I’ve Seen Your Face Before [Já vi seu rosto antes], parte do projeto Ecos do Atlântico Sul, do Goethe-Institut São Paulo. Em 2018, foi membro da equipe curatorial da 10ª Bienal de Berlim, intitulada We Don’t Need Another Hero [Não precisamos de outro herói].
Assistente de curadoria
(São Paulo, SP) radicada na cidade de Sorocaba, bacharel em Comunicação Social: publicidade e propaganda na Uniso e pós-graduada em Cinema, Vídeo e TV: estética da imagem em movimento no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. É artista visual e pesquisadora. Atualmente é assistente de curadoria da 3ª edição de Frestas – Trienal das Artes 2020-2021.
Nesta 3ª edição de Frestas – O rio é uma serpente, a educação é um dos pilares curatoriais. Gosto de pensar o programa educativo como a margem desse rio-serpente. A margem de um rio é o seu contorno, a beiradinha da água que convida a molhar o pé ou a mergulhar nele. É a área limite entre o dentro e o fora da exposição, ao mesmo tempo que não é passível de separação dela; uma margem de material natural, porosa, que possibilita trocas entre o rio e o que está fora dele: de dentro para fora, mas também de fora para dentro. Essa imagem diz muito sobre a forma como o programa de educação integra a curadoria desta exposição, não só contornando-a e apenas comunicando-a para seus espectadores, mas ampliando-a pelo território, chegando a outros interlocutores e os convidando a intervir nela.
Pensando assim, o Programa Educativo de O rio é uma serpente tem atuado da seguinte forma:
Aproximações com o território: juntamente com Camila Fontenele, assistente da curadoria, mapeamos a cidade de Sorocaba a fim de escavar a história oficial e seus agentes, fazendo cruzos entre passado e presente e descobrindo trajetórias não contadas ou invisibilizadas do município. A partir desse mapeamento surge Apé, um jogo de tabuleiro que insere a trajetória pessoal do espectador da exposição na discussão a respeito da coexistência de diferentes cosmopercepções em um mesmo território.
Tópicos para a diferença e a justiça social foi a formação de professores desta edição de Frestas, que aconteceu de 3 de outubro a 21 de novembro de 2020, de forma remota, durante oito sábados, totalizando 24 horas de formação. Construímos um amplo leque de agentes de diversas regiões e formas de pensar a educação, trabalhando assuntos ainda vistos como tabu na sala de aula, como temas ligados a gênero e sexualidade, infância e racismo, diáspora africana como centralidade na construção da sociedade brasileira, a implementação das leis 10.639 e 11.645, tecnologia e educação, entre outros. Todos os encontros estão disponíveis no YouTube do Sesc Sorocaba e também aqui no site.
Afluentes é a publicação educativa desta edição de Frestas, na qual convidamos 34 educadores e pesquisadores de diversas regiões e contextos educacionais, buscando construir uma investigação ampliada de fontes, perspectivas, tradições e agentes que de alguma forma desembocam no conceito curatorial deste rio-serpente. É um compilado formado por conversas, ensaios e programas de aula que abarcam temas como linguagens, acessibilidade, metodologias de ensino não convencionais, educação não formal, ensino de jovens e adultos, educação universitária, educação política, saúde, espiritualidade, africanidades e afrobrasilidades. O conteúdo da publicação funciona como uma abertura, um convite para que o leitor mergulhe sozinho, de modo a entender as melhores formas de aproximação com os temas.
Construção e formação da equipe educativa que atuará na exposição. Buscamos construí-la com jovens universitários de cursos diversos, com experiências de educação não hegemônica, que atuam no ensino formal ou informal, e não necessariamente com formação em artes. Nossa ideia é que essa equipe construa visões plurais para a exposição, que aprendam na convivência e com os diferentes olhares uns com os outros e com o público, e que os saberes sejam construídos coletivamente no curso da exposição, entendendo que não existe um saber fixo quando falamos de arte.
Renata Sampaio
coordenadora educativa
Renata Sampaio
(Rio de Janeiro, 1988) Artista, educadora e curadora independente. Mestranda em Artes Visuais pela UFPel, na linha de Processos de Criação e Poéticas do Cotidiano, e graduada em Artes Cênicas pela UNIRIO. Se interessa por temas ligados ao corpo negro, território e intimidade e como essas três chaves informam a arte e a educação no Brasil. Tem produção em performance, vídeo, fotografia e som. Possui 15 anos de experiência em arte-educação, foi coordenadora do programa educativo das duas últimas edições da Bienal do Mercosul, e atualmente é coordenadora educativa da 3ª edição de Frestas – Trienal de Artes.
Esse não é um texto sobre um projeto. Ou pelo menos não é um texto comum sobre um projeto de arquitetura de exposição. Quando surgiu o convite para escrever para o site de Frestas durante a montagem, suspeitei que enfrentaria dificuldades. Expor em palavras um partido arquitetônico parecia ser pouco diante daquele processo em andamento já havia algum tempo. Então decidi fugir de uma simples descrição de um trabalho realizado e partir para o relato de uma experiência vivida.
Fui convidado por Bea, Diane e Thiago em dezembro de 2019 para desenvolver a expografia da trienal em Sorocaba. Antes da confirmação do convite, tivemos uma reunião em uma tarde daquele mês no escritório da Ana. A ideia era nos conhecermos. Conversamos sobre minhas experiências em expografia e eles anunciaram as primeiras ideias para Frestas. Surgiram, na conversa, imagens trazidas de uma viagem de pesquisa para a trienal realizada por eles. Lembro-me de eles descreverem um grande rio, enquanto eu dizia que montar uma exposição era de algum modo compor uma paisagem. Recordo-me de eles falarem em sinuosidade, enquanto eu contava estar interessado no movimento dos corpos dentro dos espaços expositivos. No começo de 2020, apresentei um projeto preliminar no qual essas questões estavam materializadas na forma de um espaço situado em um dos estacionamentos da unidade. Propus a criação de um raciocínio de piso em que algumas obras repousariam. O desenho trazia muitas diagonais, já que eu pensava em burlar a lógica ortogonal de circulação daquele subsolo em busca de outra movimentação para os corpos dos visitantes.
Voltando do Carnaval, eu tinha o compromisso com o Sesc de fechar o projeto em algumas semanas. Todo o processo foi interrompido naquele meio de março, quando a pandemia da Covid-19 nos interditou. A partir desse ponto, minha memória fica um pouco confusa em relação à sequência dos acontecimentos. Mas me lembro de uma conversa por telefone com a Francine. Talvez em maio. Sem certezas do futuro do projeto, divagamos sobre o que poderia ser uma exposição de artes visuais em tempos pandêmicos ou em um pós impossível naquele momento de ser cogitado.
Em algum mês do segundo semestre de 2020, ainda sem respostas sobre o futuro da exposição, algumas ações virtuais foram pensadas para Frestas. Entre o conjunto de ações, fui convidado para desenvolver um curso para interessados em expografia. Eu já havia ministrado alguns cursos na área dentro da rede Sesc São Paulo. A novidade interessante era que o ambiente virtual permitiria que pessoas do Brasil inteiro participassem. Sendo um arquiteto formado no Ceará, sei das dificuldades em ter acesso a oportunidades concentradas na Região Sudestina. Muitas vezes o deslocamento é preciso, mas é uma realidade para poucos. Vim morar em São Paulo em 2005, chance obtida a partir de privilégios. Cheguei com o intuito de me aproximar de práticas em arquitetura com campo pouco estabelecido em meu estado de origem. Procurava coisas como cenografia, direção de arte e expografia.
Voltando para o curso, a inscrição mostrou interesse no assunto por parte de pessoas de diversos locais. Isso tornou as trocas dos encontros mais proveitosas. Minha experiência como expógrafo está situada basicamente no estado de São Paulo. Então, corro sempre o risco de generalizar uma reflexão a partir de uma vivência muito localizada. Escutar como a Matheusa entendia a produção de exposições em Recife, por exemplo, trouxe uma fricção interessante para as conversas. A turma também tinha formação bastante heterogênea. Eram educadores, gestores, produtores, artistas e alguns arquitetos. Obviamente isso contribuiu para o crescimento dos debates. A única dificuldade foi propor o exercício de projeto, lembrando que o curso tinha uma parte prática na qual teríamos de rascunhar uma exposição. Porém, nem todos dominavam ferramentas de representação gráfica para a elaboração de plantas ou perspectivas. Contornamos o obstáculo entendendo que o desenho não seria a única forma possível de representar um espaço. Como resultado do ateliê, além de propostas apresentadas de modo mais convencional, uma participante resolveu seu trabalho de maneira textual. Ela emulava um percurso, encadeando obras e salas expositivas. De algum modo, isso me fez lembrar certas práticas em dança, nas quais você é levado a se movimentar a partir de uma condução proferida por um terceiro. Acho que chegamos a fechar os olhos durante a leitura do texto.
Pouco tempo depois do curso, ainda dentro do conjunto de ações virtuais sugeridas para aquele segundo semestre de 2020, fui convidado a participar dos momentos iniciais do grupo de estudos. A ideia era que eu entrasse em contato com os 15 artistas do programa e suas propostas para Frestas, mesmo ainda sem termos a certeza de que a exposição física aconteceria. Por uma semana, acompanhei as demonstrações e também fiz duas falas. Na primeira, eu me apresentei, e, na segunda, tentei dar conta de mostrar um pouco das condições físicas do Sesc Sorocaba. Para alguns artistas, esse reconhecimento do espaço era algo essencial. Em tempos não pandêmicos, uma visita técnica resolveria essa questão. Mas, naquele estágio da crise sanitária, esse deslocamento não era algo viável. Então essa notícia do espaço teria de ser informada por mim, iniciando uma condição de confiança. Creio que, nesse momento, uma chave virou. Caso a exposição fosse acontecer, ela deveria ser produto de uma comunicação muito apertada entre meu trabalho e as proposições dos artistas. Desse modo, passamos a desenvolver uma intimidade que determinou o jeito como iríamos trabalhar e viver algo juntos daquele ponto em diante. Alguns dias depois de finalizado o grupo de estudos, Laís me adicionou no WhatsApp. Oi, Laís!
Frestas confirmada para abril, entreguei o executivo do projeto em 8 de janeiro de 2021. A ideia da proposta inicial foi pouco alterada. A permeabilidade do espaço sugerido lá atrás me parecia ainda fazer sentido naquele novo contexto. Porém, alguns artistas passaram a demandar salas fechadas, à procura de experiências de imersão ou controle total de luz. Adicionei ao projeto cinco salas coladas a duas laterais do estacionamento. Cada sala foi desenhada a partir das questões dos trabalhos. Passamos a ter curvas e um recinto em forma de diamante. Porém, essas salas irregulares estariam contidas exteriormente por uma pele regular, deixando assim as diagonais da arquitetura do centro existirem sozinhas.
Segunda onda, novo adiamento, separação, o inferno.
Creio que em maio retomamos as conversas sobre Frestas. A nova data de abertura foi marcada para agosto. Resolvida a empresa que iria montar a exposição, tive uma reunião com o Jaime para negociar pequenas alterações, já que alguns trabalhos naturalmente haviam mudado depois de tanto tempo. Com o começo da construção, em julho, passei praticamente a viver em Sorocaba. Um início mais solitário, já que a própria equipe de cenotecnia não dormia por lá. Um alívio foi jantar com a Camila, quando pude conhecer sua casa e outro lado da cidade. Em agosto, o cenário mudou radicalmente. Com a chegada de todas as equipes, conheci finalmente pessoas que antes só havia visto em tela. A quantidade de trabalhos comissionados deu o tom da montagem. Precisei alterar o desenho de implantação dos trabalhos inúmeras vezes para sanar dificuldades não detectadas anteriormente ou para valorizar aspectos das obras que saltavam desconhecidas das caixas. Aquela confiança desenvolvida a partir do grupo de estudos permitiu esse jogo. Obviamente, nada foi feito sem muita negociação e sentimentos de dúvida. Mas estávamos ali juntos decidindo o que era melhor para cada um sem perder de vista o projeto em sua totalidade. Frestas foi inaugurada em 21 de agosto de 2021.
Voltei para rever a exposição somente em novembro. Primeiramente com um grupo de amigos que queria uma visita com a minha presença. Passamos uma tarde por lá, e é sempre interessante se distanciar de um trabalho e retornar algum tempo depois. Outros significados surgem e algumas decepções relaxam. Poucos dias após esse reencontro, voltei para Sorocaba novamente. Pedi para conversar com as duas equipes do programa educativo. Esse me parecia um jeito legal de terminar este texto, com essa troca. O ciclo de visitas com turmas de escola ainda não havia sido iniciado. Então, conversamos livremente sobre como estava sendo permanecer e mediar naquele espaço. Falamos sobre a leitura do público em relação aos pisos criados para receber os trabalhos. Eles apontaram quais obras pareciam eclipsadas nos circuitos mais comumente escolhidos pelos visitantes e me mostraram jogos de mediação que envolviam procedimentos de dança. Fui cobrado pelo acabamento duro do mobiliário. Dividimos a vontade de circular de patins por aquela exposição. De todos, um comentário me pegou. Talvez tenha sido feito pelo Erick. Ele me disse que o espaço permitia contato visual constante entre os integrantes da equipe de educadores. Mesmo espalhados, era possível manter relação entre os grupos, e a sensação de cuidado mútuo permanecia. Esse tipo de coreografia me interessa.
Beijos para todas as equipes.
Tiago Guimarães
São Paulo, 3 de dezembro de 2021.
Tiago Guimarães
É arquiteto e urbanista formado pela Universidade Federal do Ceará. Tem especialização em Design de Interiores pelo Centro Universitário do Senac. Fez parte do Estúdio Risco entre 2007 e 2019, onde desenvolveu projetos de expografia para mostras de arte, além de outras atividades. Desde 2009, colabora com a arquiteta Marta Bogéa no desenho de exposições.
Atuou em mostras como 36º Panorama da Arte – Sertão (Mam de São Paulo, 2019), Egito sob o olhar de Napoleão (Itaú Cultural, 2019), A queda do céu (Caixa Cultural de Brasília, 2019), Arte-Veículo (Sesc Pompeia, 2018), 29ª Bienal de São Paulo (Fundação Bienal, 2010), entre outras.
Atualmente assina o projeto expográfico da 3ª edição de Frestas – Trienal de Artes.
A identidade visual da 3ª edição da trienal é assinada por Fabiano Procópio e Estúdio Margem.
Além da publicação Afluentes, que compõe o material educativo da 3ª Frestas – Trienal de Artes e que contou com o apoio da coordenação editorial, esse núcleo de Frestas, composto por Cecília Floresta e equipe interna e externa de colaborações, propõe a publicação de um catálogo que reunirá textos da curadoria, colaborações de artistas, artigos, traduções inéditas e um arquivo imagético da exposição. Nesta edição, entendemos a importância de uma peça gráfica não apenas comprometida com o registro de obras e escritos em diálogo com a exposição, mas que possa sobreviver a este momento, operando como peça de referência do pensamento curatorial por trás da mostra.
Outro viés do editorial de Frestas é o Guia de Visitação, que reúne informações técnicas e breves resenhas sobre as obras expostas. Essas resenhas são textos comissionados pela curadoria e produzidos por agentes de diversas áreas, contendo abordagens biográficas, descrições básicas dos trabalhos e perspectivas críticas acerca das obras e produções de cada artista. Trata-se de uma peça pensada para servir de apoio ao público durante o percurso expositivo e que se desdobra numa espécie de fortuna crítica da 3ª Frestas – Trienal de Artes.
Cecília Floresta
coordenação editorial
2ª edição
Entre Pós-Verdades e Acontecimentos
Curadoria geral: Daniela Labra
De 12 de agosto até 3 de dezembro de 2017
Acesse o site: frestas2017.sescsp.org.br
1ª edição
O que seria do mundo sem as coisas que não existem?
Curadoria geral: Josué Mattos
De 23 de outubro de 2014 a 3 de maio de 2015
Acesse o site: frestas2014.sescsp.org.br