Pêdra, sua participação em O rio é uma serpente acontece a partir da remontagem da obra Anti-análise, de 2015. Trata-se de um trabalho simples em sua estrutura, porém de relativa complexidade em seu processo e logística de produção, pois a realização é condicionante à adesão de um grupo específico de pessoas e a disponibilidade individual para a troca. Poderia comentar sobre a experiência desta edição da obra, levando em consideração as dinâmicas propostas para provocar este público seleto de artistas a interagir?
A Anti-análise foi realizada pela primeira vez em Natal em 2015, depois em 2018 no Rio de Janeiro. Em ambos os casos foi realizada presencialmente, com artistas que moravam nessas cidades. Dessa vez foi online, o que possibilitou a adesão de pessoas de várias cidades, e funcionou muito bem nessa nova plataforma. Esse trabalho se materializa a partir da minha experiência com pessoas que me procuravam para conversar sobre seus trabalhos de arte e/ou acadêmicos, principalmente jovens e/ou iniciantes, buscando lidar com temas que fossem experimentais, est/éticos e, principalmente, críticos. Se já havia essa disponibilidade anterior (desde por volta de 2006), por que não organizar e potencializar essa prática de forma mais aberta e ao mesmo tempo mais direcionada?
Na verdade, a única dinâmica proposta foi a convocatória aberta, com a disponibilidade de cada artista me enviar por email o trabalho, projeto e/ou ideia que gostariam de conversar sobre, e estar presente online em um determinado dia, no período de uma hora. O público que veio até mim, são pessoas que já conhecem e/ou admiram meu trabalho, que enxergam minha trajetória e acreditam que eu posso ajudar em suas reflexões e potencialidades. Então é um processo íntimo que leva a uma potência coletiva.
Para a psicanálise o vínculo estabelecido entre paciente e terapeuta tem entre seus objetivos compreender, através de interpretações, as ações que nos levam aos sintomas de angústia e ansiedade. Sua Anti-análise, ao contrário desta via unilateral, promove a reelaboração de poéticas e trajetórias dissidentes, a partir da transmissão de saberes pautados em sua longa experiência no campo artístico. Como é criada a metodologia para tantas conversas realizadas no escopo do projeto?
Sim, foram 44 conversas com artistas individuais, uma dupla e um coletivo. A metodologia é não ter uma metodologia fechada, é acreditar no encontro, na intuição, na sabedoria e na experiência. Tenho, obviamente, objetivos: 1 – potencializar a obra, mostrando caminhos e possibilidades; 2 – trabalhar na autoconfiança da pessoa, desbloqueando qualquer impossibilidade da realização, ao mesmo tempo trabalhando a segurança interna e externa para a materialização da obra; 3 – entender quais são os limites e as bases legais e ideológicas do contexto da obra e da artista nesse sistema político-econômico em que vivemos; 4 – e quebrar ilusões sobre o sistema de arte e/ou acadêmico, e fazer com que a obra se realize, fazer com que esse ciclo se complete.
Agora, com certo distanciamento temporal do trabalho, você conseguiria traçar pontos semelhantes, características de comportamentos, escolhas, planos e frustrações, os quais se repetiram entre as consultas? Seria possível esboçar um perfil comum, embora não generalizante, de uma geração ou contexto de atuação?
Existiam duas grandes questões em comum: o caminho que o país estava indo (necro)politicamente para pessoas morando no Brasil, e a pandemia. A grande questão era como continuar se a impossibilidade estava posta. Assim como na ditadura, ao mesmo tempo diferente por causa das redes sociais e de todo aparato online, a necessidade de uma arte e de uma prática mais político-ativista e resiliente se mostrava. Quando se trabalha com a impossibilidade, tudo pode ser possível. Acredito que essa geração está mudando os rumos do sistema de arte. Mas, é confiar desconfiando, pois o sistema sempre se adapta.
Em relação ao sistema da arte e suas idiossincrasias, sua vivência entre Brasil e Berlim, e o resultado crítico que leva desta experiência em Frestas, quais seriam as armadilhas a serem desativadas?
Eu pessoalmente acho que as armadilhas são as mesmas de antes, com uma nova roupagem. Acredito muito na busca do caminho individual conectado ao coletivo e muito trabalho, o que leva tempo e investimento e, por causa da velocidade desenfreada e das ilusões de sucesso rápido que o mundo virtual nos apresenta, isso pode causar muitas frustrações e processos de adoecimento. Para crescer como artista, entendendo toda artista como uma pessoa sensível, precisa-se de uma prática de autoconhecimento e de sabedoria política para lidar com o sistema atual, numa fase de lutos, falta de oportunidades, num sistema que elege algumas pessoas em detrimento de outras, e de não se deixar capturar pela hegemonia de poder. Reproduzir esse poder, e não questioná-lo e transformá-lo, pode ser a grande armadilha.
Pêdra Costa é também conhecida e reverenciada como uma “housemother”, referência para muitas artistas dissidentes no Brasil e, especialmente, para as que se encontram em contextos migratórios. Você se reconhece nesse lugar de acolhimento, confiança e educação para as novas gerações? Como e onde você acredita que poderia colaborar com artistas que estão iniciando suas histórias?
Eu vejo que os meus trabalhos foram a base principal de inspiração para muitas pessoas no Brasil, e que contribuíram para uma mudança de paradigma que vemos atualmente nas artes e na academia. A minha principal questão é que eu não quero que as pessoas sejam como eu, que passem pelo o que eu passei, ou que reproduzam o que eu falo ou faço, mas que elas mesmas desenvolvam suas próprias linguagens, teorias, e formas de estar no mundo. Ao mesmo tempo, acredito na contaminação e na troca. Eu continuo colaborando com artistas, seja pela orientação através do oráculo (tarô), seja pela anti-análise. Meu sonho é que a Anti-análise seja um trabalho contínuo através de alguma instituição e gratuito para quem a procurar.