Esse não é um texto sobre um projeto. Ou pelo menos não é um texto comum sobre um projeto de arquitetura de exposição. Quando surgiu o convite para escrever para o site de Frestas durante a montagem, suspeitei que enfrentaria dificuldades. Expor em palavras um partido arquitetônico parecia ser pouco diante daquele processo em andamento já havia algum tempo. Então decidi fugir de uma simples descrição de um trabalho realizado e partir para o relato de uma experiência vivida.
Fui convidado por Bea, Diane e Thiago em dezembro de 2019 para desenvolver a expografia da trienal em Sorocaba. Antes da confirmação do convite, tivemos uma reunião em uma tarde daquele mês no escritório da Ana. A ideia era nos conhecermos. Conversamos sobre minhas experiências em expografia e eles anunciaram as primeiras ideias para Frestas. Surgiram, na conversa, imagens trazidas de uma viagem de pesquisa para a trienal realizada por eles. Lembro-me de eles descreverem um grande rio, enquanto eu dizia que montar uma exposição era de algum modo compor uma paisagem. Recordo-me de eles falarem em sinuosidade, enquanto eu contava estar interessado no movimento dos corpos dentro dos espaços expositivos. No começo de 2020, apresentei um projeto preliminar no qual essas questões estavam materializadas na forma de um espaço situado em um dos estacionamentos da unidade. Propus a criação de um raciocínio de piso em que algumas obras repousariam. O desenho trazia muitas diagonais, já que eu pensava em burlar a lógica ortogonal de circulação daquele subsolo em busca de outra movimentação para os corpos dos visitantes.
Voltando do Carnaval, eu tinha o compromisso com o Sesc de fechar o projeto em algumas semanas. Todo o processo foi interrompido naquele meio de março, quando a pandemia da covid-19 nos interditou. A partir desse ponto, minha memória fica um pouco confusa em relação à sequência dos acontecimentos. Mas me lembro de uma conversa por telefone com a Francine. Talvez em maio. Sem certezas do futuro do projeto, divagamos sobre o que poderia ser uma exposição de artes visuais em tempos pandêmicos ou em um pós impossível naquele momento de ser cogitado.
Em algum mês do segundo semestre de 2020, ainda sem respostas sobre o futuro da exposição, algumas ações virtuais foram pensadas para Frestas. Entre o conjunto de ações, fui convidado para desenvolver um curso para interessados em expografia. Eu já havia ministrado alguns cursos na área dentro da rede Sesc São Paulo. A novidade interessante era que o ambiente virtual permitiria que pessoas do Brasil inteiro participassem. Sendo um arquiteto formado no Ceará, sei das dificuldades em ter acesso a oportunidades concentradas na Região Sudestina. Muitas vezes o deslocamento é preciso, mas é uma realidade para poucos. Vim morar em São Paulo em 2005, chance obtida a partir de privilégios. Cheguei com o intuito de me aproximar de práticas em arquitetura com campo pouco estabelecido em meu estado de origem. Procurava coisas como cenografia, direção de arte e expografia.
Voltando para o curso, a inscrição mostrou interesse no assunto por parte de pessoas de diversos locais. Isso tornou as trocas dos encontros mais proveitosas. Minha experiência como expógrafo está situada basicamente no estado de São Paulo. Então, corro sempre o risco de generalizar uma reflexão a partir de uma vivência muito localizada. Escutar como a Matheusa entendia a produção de exposições em Recife, por exemplo, trouxe uma fricção interessante para as conversas. A turma também tinha formação bastante heterogênea. Eram educadores, gestores, produtores, artistas e alguns arquitetos. Obviamente isso contribuiu para o crescimento dos debates. A única dificuldade foi propor o exercício de projeto, lembrando que o curso tinha uma parte prática na qual teríamos de rascunhar uma exposição. Porém, nem todos dominavam ferramentas de representação gráfica para a elaboração de plantas ou perspectivas. Contornamos o obstáculo entendendo que o desenho não seria a única forma possível de representar um espaço. Como resultado do ateliê, além de propostas apresentadas de modo mais convencional, uma participante resolveu seu trabalho de maneira textual. Ela emulava um percurso, encadeando obras e salas expositivas. De algum modo, isso me fez lembrar certas práticas em dança, nas quais você é levado a se movimentar a partir de uma condução proferida por um terceiro. Acho que chegamos a fechar os olhos durante a leitura do texto.
Pouco tempo depois do curso, ainda dentro do conjunto de ações virtuais sugeridas para aquele segundo semestre de 2020, fui convidado a participar dos momentos iniciais do grupo de estudos. A ideia era que eu entrasse em contato com os 15 artistas do programa e suas propostas para Frestas, mesmo ainda sem termos a certeza de que a exposição física aconteceria. Por uma semana, acompanhei as demonstrações e também fiz duas falas. Na primeira, eu me apresentei, e, na segunda, tentei dar conta de mostrar um pouco das condições físicas do Sesc Sorocaba. Para alguns artistas, esse reconhecimento do espaço era algo essencial. Em tempos não pandêmicos, uma visita técnica resolveria essa questão. Mas, naquele estágio da crise sanitária, esse deslocamento não era algo viável. Então essa notícia do espaço teria de ser informada por mim, iniciando uma condição de confiança. Creio que, nesse momento, uma chave virou. Caso a exposição fosse acontecer, ela deveria ser produto de uma comunicação muito apertada entre meu trabalho e as proposições dos artistas. Desse modo, passamos a desenvolver uma intimidade que determinou o jeito como iríamos trabalhar e viver algo juntos daquele ponto em diante. Alguns dias depois de finalizado o grupo de estudos, Laís me adicionou no WhatsApp. Oi, Laís!
Frestas confirmada para abril, entreguei o executivo do projeto em 8 de janeiro de 2021. A ideia da proposta inicial foi pouco alterada. A permeabilidade do espaço sugerido lá atrás me parecia ainda fazer sentido naquele novo contexto. Porém, alguns artistas passaram a demandar salas fechadas, à procura de experiências de imersão ou controle total de luz. Adicionei ao projeto cinco salas coladas a duas laterais do estacionamento. Cada sala foi desenhada a partir das questões dos trabalhos. Passamos a ter curvas e um recinto em forma de diamante. Porém, essas salas irregulares estariam contidas exteriormente por uma pele regular, deixando assim as diagonais da arquitetura do centro existirem sozinhas.
Segunda onda, novo adiamento, separação, o inferno.
Creio que em maio retomamos as conversas sobre Frestas. A nova data de abertura foi marcada para agosto. Resolvida a empresa que iria montar a exposição, tive uma reunião com o Jaime para negociar pequenas alterações, já que alguns trabalhos naturalmente haviam mudado depois de tanto tempo. Com o começo da construção, em julho, passei praticamente a viver em Sorocaba. Um início mais solitário, já que a própria equipe de cenotecnia não dormia por lá. Um alívio foi jantar com a Camila, quando pude conhecer sua casa e outro lado da cidade. Em agosto, o cenário mudou radicalmente. Com a chegada de todas as equipes, conheci finalmente pessoas que antes só havia visto em tela. A quantidade de trabalhos comissionados deu o tom da montagem. Precisei alterar o desenho de implantação dos trabalhos inúmeras vezes para sanar dificuldades não detectadas anteriormente ou para valorizar aspectos das obras que saltavam desconhecidas das caixas. Aquela confiança desenvolvida a partir do grupo de estudos permitiu esse jogo. Obviamente, nada foi feito sem muita negociação e sentimentos de dúvida. Mas estávamos ali juntos decidindo o que era melhor para cada um sem perder de vista o projeto em sua totalidade. Frestas foi inaugurada em 21 de agosto de 2021.
Voltei para rever a exposição somente em novembro. Primeiramente com um grupo de amigos que queria uma visita com a minha presença. Passamos uma tarde por lá, e é sempre interessante se distanciar de um trabalho e retornar algum tempo depois. Outros significados surgem e algumas decepções relaxam. Poucos dias após esse reencontro, voltei para Sorocaba novamente. Pedi para conversar com as duas equipes do programa educativo. Esse me parecia um jeito legal de terminar este texto, com essa troca. O ciclo de visitas com turmas de escola ainda não havia sido iniciado. Então, conversamos livremente sobre como estava sendo permanecer e mediar naquele espaço. Falamos sobre a leitura do público em relação aos pisos criados para receber os trabalhos. Eles apontaram quais obras pareciam eclipsadas nos circuitos mais comumente escolhidos pelos visitantes e me mostraram jogos de mediação que envolviam procedimentos de dança. Fui cobrado pelo acabamento duro do mobiliário. Dividimos a vontade de circular de patins por aquela exposição. De todos, um comentário me pegou. Talvez tenha sido feito pelo Erick. Ele me disse que o espaço permitia contato visual constante entre os integrantes da equipe de educadores. Mesmo espalhados, era possível manter relação entre os grupos, e a sensação de cuidado mútuo permanecia. Esse tipo de coreografia me interessa.
Beijos para todas as equipes.
Tiago Guimarães
São Paulo, 3 de dezembro de 2021.